Um dia, o rei D. Manuel tomou para si o papel de Herodes, e como um satrapa mandou arrancar aos pais e baptizar todos os filhos menores de quatorze anos, “a qual obra tão-somente foi de grão terror misturado com muitas lágrimas, dor e tristeza dos judeus, mas ainda de muito espanto e admiração dos christãos.” Ao mesmo tempo, num prazo breve, os judeus haviam de receber o baptismo, ou embarcar em navios que se lhes não davam.
(…)Por outro lado, em Lisboa, onde, para embarcar, os judeus tinham vindo de todo o reino, os Estáos da Ribeira , apresentavam o aspecto de um acampamento antigo. Albergadas em barracas as famílias – vinte mil judeus esperavam as naus de embarque, contando hora a hora o prazo da redenção. Esse prazo correu, sem virem as naus: por isso foram todos convertidos à força, porque os teimosos ficaram cativos. Este baptismo forçado, causa de tantas desgraças posteriores, revela a política dúbia e falsa de um governo que não tinha a coragem purista do castelhano, depois de ter perdido o bom senso e a humanidade dos tempos anteriores. Desumanos, os actos eram ao mesmo tempo cobardes, pois o cronista diz com franqueza que se procedia assim com os judeus por serem párias, sem rei nem terra, não se podendo já fazer outro tanto com os mouros, com medo das represálias dos soberanos maometanos.
De tal modo se originou a crise que teve na era de 1506 o seu primeiro episódio trágico.
As fomes dos anos precedentes, a peste que lavrara no Outono anterior e vitimara já na Primavera mais de cem pessoas por dia, enchiam de aflição o povo da capital, que buscava uma causa a tamanhas desgraças. D. Manuel tinha fugido da peste, para Évora. O castigo tremendo, que a cólera divina impunha sem piedade, não podia ter outro motivo senão a criminosa protecção concedida aos judeus. Baptizados, mas não convertidos, eram uma viva e impune blasfémia; e todos os seus actos religiosos outros tantos sacrilégios. Deus estava, de certo, ofendido; e por isso castigava sem dó. E o pobre povo sofria tamanhas misérias por causa destes malditos que insultavam Deus dentro do seu templo sagrado, fingindo orar e comungando!
(…)A 15 de Abril tinha havido uma procissão, com votos e lágrimas, pedindo a cessação do flagelo; e todas as noites, em São Domingos, se faziam preces públicas. Houvera um milagre, a 19, dia de Pascoela: a custódia do lado do Senhor aparecera iluminada; mas um herege ousou rir, dizendo que um pau seco não podia fazer milagres. Isto fez transbordar a ira de todos, e o tumulto começou fulminante. O ímpio foi tirado pelos cabelos de rastos, para fora da igreja, e logo ali morto e lançado a uma fogueira.
Os mercadores dos arcos do Rossio, desde a Betesga até S. Domingos, fecharam as lojas – onde vendiam as cassas de Holanda, os panos de linho cadequim da Índia, rendas, tranças, franjas e passamanarias – vindo em pessoa, com os seus escravos pretos e mouros, engrossar o tropel. A multidão corria por debaixo d’essa arcada, que limitava por oriente o Rossio, abrangendo o Hospital e o dormitório do convento de S. Domingos, amontoando-se às portas da igreja, onde o burburinho era grande, e um frade, de crucifixo em punho, pregava, exaltando o furor religioso da turba.
As mulheres agitavam-se coléricas pronunciando ditos obscenos, palavras descompostas, à mistura com as expressões de refinada devoção e de um fervente beaterio. Incitavam os homens à matança; e, do púlpito, o frade, oráculo do céu, definia com palavras o sentimento da multidão. Os judeus eram a causa da fome, eram a causa da peste! De cruz alçada, saindo da igreja, os frades vinham clamando, heresia! Heresia! Concitando o povo à matança.
Já houvera sangue, já crepitava o lume; e a cor rubra e os primeiros ais dos moribundos exacerbavam, como um touro, a fúria da plebe, açulada pelos sermões dos frades energúmenos. Desencadeou-se a tempestade, rebentando numa hora a cólera reunida em muitos séculos. Cresceram as fogueiras no Rossio e na Ribeira; e os bandos iam caçar pela cidade os judeus escondidos, invadindo as casas. Traziam-nos às manadas de quinze e vinte, amarrados, feridos, cuspidos, semimortos; e lançavam-nos, aos montes, nas fogueiras. As chamas crepitavam, e os gritos dos moribundos conseguiam ouvir-se por entre o vozear da plebe. Os sinos dobravam a rebate, chamando os fiéis à matança. Viam-se homens despirem-se, para mostrarem que, não sendo circuncisados, não podiam ser judeus; porque o furor da plebe já arrastava a queimar tudo, numa fogueira que purificasse os ares pestilentos. Além disso, as vinganças pessoais e o roubo soltavam-se à vontade no meio da desordem. Queimavam-se os infelizes, porque tinham sido assassinados; e assassinavam-se, porque se não deixavam roubar. Ao saque de Lisboa tinham corrido as tripulações dos navios do Tejo: eram mais de quinhentos marinheiros flamengos e outros; e na faina do roubo e da matança andavam gentes de todas as nações e cores, invadindo as casas, violando as mulheres, e incendiando. No primeiro dia, domingo, não faltou gente: matou-se meio milhar. Na segunda-feira eram já mil e quinhentos os que andavam na faina da matança. As justiças tinham fugido, o povo escondera-se, os judeus aferrolhavam as portas, enquanto os escravos acarreavam lenha para as fogueiras, os bandidos assaltavam as casas com vaivéns e escadas. Arrancavam as crianças do colo das mães desesperadas, e, tomando-as pelos pés, esmagavam-lhes os crânios tenros contra os muros. As casas escorriam sangue, que se precipitava pelas escadas vindo reunir-se em poças nas ruas. Havia um cheiro nauseabundo de carne queimada, risadas ferozes nos rostos dos pretos, os olhares terríveis na face macilenta dos frades, que pregavam à esquina das ruas. Os desgraçados corriam às igrejas perseguidos, rojavam-se nos altares abraçados aos santos e aos sacrários, e dali eram levados à fogueira arrastados pelos sicários. Na segunda feira mataram-se mais de mil. Na terça acalmou a fúria porque “já não achavam quem matar.” Três dias e duas noites durou a orgia; e no fim contavam-se mais de trezentas pessoas queimadas, mais de duas mil mortas, e não se sabe quantas mulheres, chorando com amargura a sua viuvez, a sua orfandade, a sua miséria, a sua desonra.
O rei acudiu com tropas, abriu devassa e enforcou muita gente; entre essa, frades. Os marinheiros de bordo velejaram barra em fora com os roubos nas mãos tintas de sangue; nas esquinas das ruas havia forcas; na fogueira acabaram os dois frades concitadores, e Lisboa pela sua fraqueza foi desautorada dos seus foros. O rei puniu o que não soubera prevenir; e insistindo na sua indiferença, ou na sua fraqueza, fez com que as cenas de Lisboa se reproduzissem periodicamente por todo o reino.”
J.P. Oliveira Martins (1845-1894), in História de Portugal (Tomo II), Livraria Bertrand, Lisboa, 1882.